segunda-feira, 29 de junho de 2009

O Terreiro do Paço e a Invenção do Futuro


1. Do Terreiro do Paço de 1500 à Praça do Comércio de 2000

Na época dos descobrimentos o mundo desagua no Tejo, no terreiro onde em 1500 D. Manuel manda construir o Paço da Ribeira. Lisboa é a porta do mundo. No Terreiro do Paço, contíguo à Ribeira das Naus, frente ao ancoradouro das mais variadas embarcações, constrói-se também a Casa da Índia e a Alfandega. Aí sucedem-se cortejos, festas, chegadas e partidas, espectáculos exóticos, com a participação de toda a população. É o testemunho de relatos e gravuras que nos revelam o Terreiro do Paço como palco das demais variadas cenografias. Despido de árvores destaca-se a fonte isolada. Filipe, chegado a Lisboa, renova o Paço Manuelino, transforma-o no Palácio Real com um torreão proeminente, representação de um poder cosmopolita e referência desse poder na silhueta da cidade.


Vista geral da cidade de Lisboa, 1752
anónimo, Museu da Cidade

Com o terramoto / maremoto / incêndio de 1755 e a retirada do Palácio Real, a que vem designar-se Praça do Comércio, fica delimitada pelo Arsenal da Marinha, Tribunais, Alfandega, conforme plano de Eugénio das Santos e Carlos Mardel, traçado que perdura e inclui a muralha com o Cais das Colunas e a Estátua Equestre. A reconstrução da cidade, custeada pela Junta do Comércio, renova-a segundo uma concepção iluminista do poder. O urbanismo, racional e operativo, rompe com as pré-existências, atribui à Praça do Comércio as características de um espaço do poder político, transfere para o Rossio e outros espaços da cidade em expansão a utilização popular anterior do Terreiro do Paço.


Vista imaginária da Praça do Comércio, 2ª metade do séc. XVIII
anónimo, Museu da Cidade

Num postal de 1902 árvores transparentes desenham uma segunda arcada de sombra, depois retirada com a justificação de obstruir a visão integral da Praça.

Os instrumentos urbanísticos mais recentes 1938/48, E. de Groer, 1967/76 Meyer Heine, 1993, Bruno Soares, mantém a sua fisionomia, com transito de passagem na frente ribeirinha, progressivo condicionamento do transito local e incentivo da intermodalidade dos transportes públicos.

A Praça do Comércio é como uma sala de visitas que raramente se utiliza. Um desencanto.

Contudo:

"... um sitio assim, tão privilegiado ... a cidade pelas costas. Comércio, multidão, Europa, fica tudo para trás ... sabe-se do correr do dia pelo mudar da cor do Tejo, e não me digam que não é uma felicidade estar-se assim, à mesa sobre as águas, com gaivotas a saírem-nos de baixo dos pés ...".
(José Cardoso Pires, Lisboa Livro de Bordo, 1997)

2. A requalificação do Terreiro do Paço em curso

Em reunião pública da CML de 2009-05-27 foi aprovado o "Estudo Prévio do Terreiro do Paço" coordenado por Bruno Soares e visando a sua requalificação a tempo das comemorações do centenário da República. O Centro de Informação Urbana de Lisboa já promovera um mês antes a conferência " Praça da Europa, Praças para a Europa - Que futuro para a Praça do Comércio" Entre as várias comunicações destaco o estudo da percepção do espaço promovido pela Universidade Autónoma de Lisboa o qual através do apuramento de um inquérito referencia maioritariamente a ausência de arvores, sombras, esplanadas, actividades culturais e de lazer, e minoritariamente a necessidade de condicionar o trânsito automóvel - para contrariar o espaço vazio e inóspito actual dum local referenciado pelo conjunto arquitectónico e relação com o rio.
A Frente Tejo S.A. também no início de Maio divulgava o estudo inicial e colocava-o no seu site aberto à participação pública - vindo-se a destacar os temas mobilidade, dinamização de actividades e conforto ambiental - a anteceder a apresentação pública de 27 de Junho já com um estudo revisto nalguns dos seus pormenores. As imagens propostas são da uma praça deserta com um pavimento de lioz de desenho geométrico , o cais das colunas reintegrado no conjunto, passeios alargados para esplanadas e circulação automóvel reduzida e condicionada, ladeando a estátua equestre de Machado de Castro. Projectos específicos a desenvolver de iluminação, mobiliário urbano e de reutilização dos edifícios completam a requalificação pretendido para uma praça que "bateu no fundo" segundo Bruno Soares.


Simulação do Estudo Prévio da Requalificação
Frente Tejo S.A.

3. Algumas praças de referência


Praça de São Marcos, Veneza

O sítio, a Basílica, o Palácio, a Torre do Relógio, as esculturas, o pavimento - uma invenção de sucessivas gerações respeitando e valorizando sempre o património herdado - tornaram esta praça o centro dos principais acontecimentos de Veneza e uma referência universal.



Praça Maior, Madrid

Fechada por um ritmo contínuo de edifícios com arcadas, a malha regular do pavimento, a estatua equestre, combina funções politicas, administrativas, comerciais, sociais e culturais - é um centro vivo da cidade que a comunidade inventa cada dia.



Praça do Museu do Louvre, Paris

O eixo de simetria rigoroso prolonga-se por jardins formais (Tulleries) praça (Concorde) avenida (Elysées), a disciplina das fachadas decoradas, rematadas por torreões, o redesenho do pavimento com a invenção da pirâmide de vidro valoriza a vitalidade urbana deste espaço emblemático da cidade.

4. Inventar o futuro

As praças de referência são exemplos do que designo "inventar o futuro" porque se renovam sempre vivas e surpreendentes.
É necessário "inventar o futuro" do Terreiro do Paço, do que já foi braço de rio, porto, porta do mundo, terreiro do paço, praça do poder e é hoje um espaço perdido.
Inventem a ligação ao rio, para quem por ele chega à descoberta da cidade, ou parte em despedida; inventem as cores no fundo azul do céu; inventem a sombra viva das árvores; inventem o deambular livre; inventem novos usos para os edifícios - museus, universidades, comércios, serviços, residências turísticas ... - tudo o que torne a cidade viva e habitada dia e noite. Inventem a Praça do Tejo. Inventem, criativamente e com envolvimento dos cidadãos. Contem com eles.


" ... o lisboeta corrente tem cá uns traquejos e um deixa andar que lhe permitem dar a volta aos azares de estremeção e às complicações mais solenes."
(José Cardoso Pires, Lisboa Livro de Bordo, 1997)


Respeitar o património é revitalizar o seu uso e inventar o futuro.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Não nos curvemos referencialmente às "estrelas profissionais"

A propósito do manifesto de 28 economistas

As "estrelas profissionais" tornaram-se intimas do poder politico, económico e financeiro, e são muitas vezes utilizadas para com o seu prestigio sustentarem ou concretizarem objectivos do poder e das suas elites.
Este processo não serve a realidade hoje, muito exigente na busca de soluções que reabilitem uma sociedade profundamente destruturada e lhe confira a coesão e sustentabilidade requeridas.

Tomo como exemplo a prática da arquitectura. Não estou contra as boas obras de arquitectura de autor, porque além de serem actos de criatividade, pela sua qualidade são referências síntese da criação estética e técnica, marcas e memórias patrimoniais. Estou sim contra as decisões do poder que abreviam a sua promoção com o recurso generalizado ao expediente de obras de autor furtando-se a critérios transparentes de selecção, e sem inscrever a prática da arquitectura na resolução dos problemas reais da sociedade contemporânea - segregação e exclusão social, especulação e burocratização, apropriação de mais-valias públicas - conducentes à marginalidade e corrupção, ruptura cultural e social. As decisões sobre o ordenamento e a cidade são, na sua origem, actos de cidadania e ética (direitos, deveres e princípios de conduta da comunidade e dos indivíduos) antes da criação estética e técnica.


Casa da Música, Porto, arq. Rem Koolhaas, 2001

Voltemos às "estrelas profissionais". O estado deve ser o garante da identidade e solidariedade da comunidade, sem uma visão iluminada e messiânica, e deve assegurar-lhe a capacidade de natural e continuamente decidir sobre o seu futuro e os seus recursos.
O manifesto de 28 economistas sobre os grandes investimentos públicos (TGV, novo aeroporto, novas rodovias) divulgado na imprensa do passado dia 20, não deve ser entendido como propósito de auto-afirmação duma elite da área do poder, ou visão iluminada e messiânica de estrelas profissionais. Constitui uma posição cívica. Impõe-se que o estado incentive, promova e incorpore continuamente a reflexão dos portugueses sobre o seu futuro e os seus recursos. Com a visão duma identidade histórica, social e cultural que sabe sobreviver às maiores dificuldades e coexistir com o acolhimento da diferença e o desafio da universalidade.

Defendo o novo aeroporto e o TGV com a referida visão; mas necessito de conhecer as diferentes expressões da comunidade e o confronto das suas posições, conhecer a experiência dos outros para me solidarizar no caminho que sustente ou renuncie a essa visão.
O manifesto de 28 economistas, independentemente do prestigio e saber de "estrelas profissionais" ou "senadores" num sentido de maior responsabilização, constitui uma visão limitada e uma reflexão acantonada no saber e experiência duma área profissional. A sociedade necessita de cruzar e integrar os seus múltiplos conhecimentos e experiências, aprofundar as sua múltiplas percepções e desafios com que está disposta a confrontar-se.

Não nos curvemos referencialmente às "estrelas profissionais".

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Planeamos hoje em Portugal cidades sustentáveis ?

A cidade deve ser, como já foi, o paradigma da organização comunitária centrada no homem e em harmonia com a natureza - a cidade sustentável.


Leonardo da Vinci - Homem Vitruviano - 1490

Com a excessiva concentração da população nos centros urbanos a cidade expandiu-se, tornou-se fragmentária, devoradora de espaços e recursos; desumanizou-se e centrou-se sobretudo nas mais valias económicas geradora de múltiplos desequilíbrios.
A cidade tornou-se um complexo ecossistema artificial onde se conjuga o capital natural e cultural (ambiente e património) o capital social e económico (comunidade e actividade) o capital material (edifícios e infra-estruturas que configuram o território urbano).
O seu equilíbrio impõe uma visão integrada das múltiplas disciplinas que nela interferem e dos seus múltiplos contributos, através de soluções que garantam a participação e adesão da comunidade na construção da coesão social e territorial.


Manuel Cargaleiro - óleo sobre tela - 1975

A cidade sustentável é a cidade equitativa, plural e integradora, diversa e coerente, que favorece a sua fruição em condições de plena igualdade; a cidade sustentável é a cidade com uma identidade própria, economicamente consistente e competitiva, com máxima utilidade social, bela no seu ambiente e paisagem, boas condições de mobilidade, bons espaços públicos, boa integração no território, qualidade arquitectónica e construtiva, criatividade e inovação técnica.


Piazza del Duomo - Milão

Planeamos hoje cidades sustentáveis em Portugal ?

Evoluímos muito nesse domínio, do programático à acção - da concretização do PNPOT às políticas de cidades Polis, programas operacionais e instrumentos de gestão territorial; da investigação às boas normas e práticas de projecto, obra e gestão das realizações; da qualificação dos técnicos à informação e participação pública; da articulação das políticas sectoriais à reabilitação urbana; do melhor aproveitamento dos recursos ao tratamento e reciclagem dos resíduos.
É cada vez mais consistente e coerente a articulação destas acções e a existência de boas realizações.
Mas muito caminho há ainda a percorrer, designadamente na política dos solos e no combate à especulação, na consolidação duma cultura de qualificação e responsabilização no domínio do ordenamento, na maior articulação e monitorização das acções, na informação e participação pública, em síntese, na prática da decisão politica e na maior exigência de qualidade e justeza das soluções visando a consolidação de verdadeiras cidades sustentáveis.

A cidade demora tempo a fazer; já é doutros para quem chega e transforma a realidade recebida numa nova realidade, e assim sucessivamente, ao longo das gerações.


Salvador Dali - A persistência da memória - 1931

A cidade é uma formação social que vai pensando colectivamente o futuro sem estar prisioneira do tempo. A cidade viva é sempre um produto inacabado; a sua apropriação e uso, o ambiente urbano, é o que verdadeiramente a caracteriza. Com este entendimento a cidade é um sistema semiológico global, aberto e unificador.

Não se resume às realizações de técnicos especializados cuja linguagem é restrita e inacessível para a maioria dos cidadãos. A concretização da cidade tem que libertar-se da logotécnica e recorrer a sistemas semiológicos acessíveis ao universo social, para assegurar o contributo do conhecimento real da cidade pelos cidadãos.


Parc La Villette - Paris

Já as cidades gregas no seu apogeu há 2.500 anos tinham uma concepção significante que prevalecia sobre a organização técnica dos usos e funções.
Como urbanistas devemos saber valorizar a leitura e compreensão das suas componentes pelos cidadãos, os ritmos, os elementos de significado forte, neutros e de acompanhamento. Corresponde a compreender a linguagem da cidade, como ela comunica com os habitantes e estes a entendem e se relacionam afectiva e efectivamente com ela. Porque " a cidade é como um livro" (Victor Hugo) uma escrita no espaço a que se volta sempre com uma nova leitura.


Parque das Nações - Lisboa